O Natal da Formiga e da Cigarra

Enquanto a formiga aproveitava o período do Natal para relembrar e reafirmar a importância das boas ações e dos bons sentimentos promovidos pelo Menino Jesus, a cigarra estava completamente imersa no consumismo e estresse inerentes à época. E pode parecer paradoxal, mas a cigarra, mesmo em meio à agitação, estava euforicamente alegre com o clima de festa, enquanto a nobre formiga afogava-se em sua peculiar melancolia resignada.

Em seu pedestal de sabedoria, a formiga olhava toda aquela agitação ao redor com muito nervosismo e tristeza, criticando a cigarra por não observar o "verdadeiro sentido do Natal". No fundo - e talvez ela nem se dê conta disso - a formiga tinha vontade de fazer sumir aquela cigarra tão desrespeitosa em sua alegria barulhenta!

Desde os tempos mais primórdios, a alegria dos descompromissados ofende aos responsáveis de espírito.

A formiga não percebia quanto suas preces por bons sentimentos e boas ações tinham a ver com as cigarras. Por exemplo: a formiga passava o dia todo rogando por mais paciência, mas logo em seguida perdia a cabeça com as filas nas lojas, nos mercados, nas estradas, na lotérica, em todo canto. Logo ela, famosa pela labuta diária na fila do formigueiro. Não percebia que a algazarra das cigarras era a situação ideal promovida pelo mesmo Menino Jesus para que ela colocasse em prática a paciência tão rogada.

Já a cigarra, à essa altura de nossa fábula "estandarte da paciência formigal", nem se abalava: com o cartão de crédito estourado, queria apenas chutar o balde na comilança e curtir as festas com os amigos e a família. Nem passava por sua cabeça que ela, cigarra, presenteava a formiga com um baita desafio espiritual. A cigara queria apenas se divertir, prolongar a festança ao longo de todo o primeiro semestre, carnaval adentro.

Nenhuma das duas, no fundo, tinha ciência da sua verdadeira condição.

Há quem preveja que, no inverno sul-americano, a cigarra passará grande necessidade por não ter sido prudente no verão, enquanto a formiga permanecerá, com justiça, em sua toca quentinha e bem abastecida. E os mesmos preveem que a formiga, que terá passado todo o Natal louvando o desprendimento, a humildade, a misericórdia e os ensinamentos do Menino Jesus, será implacável em seu julgamento de justiça e deixará perecer a preguiçosa cigarra.

E o pior de tudo: tais pessoas ensinarão às criancinhas, por meio da famosa fábula, a importância da prudência e do trabalho, deixando de lado a oportunidade de ensiná-las, também, a relevância dos demais ensinamentos do Menino Jesus, como a misericórdia e a ajuda ao próximo. E essa fábula, incompleta em essência, fará o maior sucesso por aí.

Há quem preveja ainda que a formiga, no fim de sua vida, dirá: oh, Menino Jesus, quando deixei de atendê-lo? Eu que tantas vezes lhe construí presépios belos e quentinhos! Eu que tanto roguei por mim e pelos meus semelhantes! E os mesmos preveem que o menino Jesus dirá implacavelmente: todas as vezes que deixou de prestar misericórdia à pobre cigarra, você deixou de me atender.

E qual será a ação divina após tudo isso? Fará igual à formiga em relação à cigarra?

O que sabemos de fato - promete-nos a fé - é que o Menino Jesus é capaz de ter misericórdia de ambas, tão pequeninas diante de si, e que é essa a verdadeira diferença da sua divindade em relação à nossa animalidade: uma coisa é julgar e condenar, outra coisa é perdoar e cuidar. Ao julgarmos os outros, condenamo-nos a nós mesmos - já dizia o Menino - e ao perdoarmos uns aos outros, somos também perdoados - completava.

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